gaivota
- jumvasconcelos
- 8 de abr. de 2016
- 3 min de leitura

normalmente eu estava em pé na porta do banheiro observando o movimento dela. ela se movimentava com muita agilidade de um lado para o outro naquele lugar que pra mim era grande, mas que pra ela era pequeno. tudo nela era muito depressa. o calor sempre muito intenso da cidade, fazia com que ela se banhasse muitas vezes ao dia e isso, de alguma maneira, havia feito com que ela soubesse se banhar com a agilidade do mergulho de uma gaivota. após o “mergulho", havia uma sequência quase religiosa de gestos como enxugar as costas, enrolar a toalha de rosto nos finos cabelos molhados e passar hidratante. o momento do hidratante sempre fora o de maior estranhamento para mim. eu a observava em sua agilidade objetiva e prática e, ao mesmo tempo, minha mente miudinha sobrepunha à imagem daquela cena, a célebre imagem da ídolo de infância que se passava hidratante em câmera lenta no comercial do célebre hibradante hit dos anos 80 e 90. no comercial este momento do hidratante era glorioso e não tinha nada a ver com a maneira com a qual minha mãe se passava hidratante. nada mesmo. no comercial havia câmera lenta e o uso do conteúdo de uma embalagem para cada parte do corpo. além disso, tinha uma deslizante trilha sonora com instrumentos de corda e "a ídolo” parecia estar em transe só pelo fato de se passar aquele creme branco. então meu devaneio de memória ia se esvaindo e eu me via de volta ao banheiro de azulejos amarelos, que não tinha banheira, muito menos leite ou pétalas de rosa. com o som da panela de pressão ao fundo, minha mãe estava ali, correndo como o coelho da Alice, terminando de se passar o hidratante. o aroma dele se somava ao calor e umidade do banheiro e parece que conseguia se fundir com todas as moléculas de água e ar. (tenho a memória do vapor, do calor e do aroma tão vivamente inscrita em mim, que fecho os olhos e é como se eu estivesse neste exato instante dentro daquele amarelo todo.) e eu, mergulhada naquela piscina imaginária de flores com canela, pensava: tá tudo errado… eu vi na TV e não é assim que se deve passar hidratante… por que será que ela faz isso assim? será que não dá pra ser pelo menos em câmera lenta? e todo dia aquele mesmo ritual se repetia e eu assistia, pensando que quando eu crescesse e pudesse finalmente ser adulta para usar um hidratante, eu certamente passaria em câmera lenta e entraria naquele estado de transe peculiar - cujo apelo erótico eu então desconhecia. o tempo foi embora pra não sabemos onde, e hoje quem tem criaturas dentro do banheiro sou eu. não me recordo de ter consciência do por quê que eu estava ali naquele banheiro todos os dias com minha mãe. me lembro de só estar. hoje eu sei o por quê de estar dentro do banheiro com a mãe enquanto ela toma banho, ou no colo dela enquanto ela faz xixi, ou até mesmo o por quê de pedir para não ser posta pra fora enquanto ela faz o número dois. hoje eu sou mãe e meu tempo escasso transforma meu banheiro em espaço de convívio para o ínfimo suprimento de faltas e carências abissais acumuladas ao longo das ausências dos dias, que vão sendo contidas e engavetadas do lado de dentro das meninas. meu hidratante está lá e quando eu consigo passa-lo não é na banheira com leite e pétalas de rosa, nem em transe erótico. tampouco a câmera lenta é possível. ao pé da porta eu tenho olhinhos que me acompanham enquanto eu me movo muito rapidamente de um lado para o outro tentando aproveitar as últimas gotas de água, de hidratante e de tempo. hoje eu respondo à minha criança interna que o que a mãe dela fazia era mesmo ser gaivota. era mesmo voar. voar para longe do ninho em busca de seus sonhos pessoais e profissionais, em busca de alimento, de passeatas pela democracia, de prazer, lazer, conhecimento, cultura... e que as lacunas de sua ausência foram preenchidas ou não com o meu imaginário sobre estes vôos. hoje eu me olho no espelho embaçado do banheiro - com a presença das crianças preenchidas da minha ausência - e em meio à pressa, meu devaneio sobrepõe à minha imagem a imagem do meu verdadeiro ídolo de infância: a minha mãe. e então a minha ainda carente criança interna me conta com a voz da minha mãe, olhando na profundeza dos meus olhos: “voa! porque eu sou a gaivota.” (para minha mãe Francisca Medeiros Vasconcelos, no dia em que a Terra se posiciona como quando ela nasceu e para Luiza Conte, que está aprendendo a voar e a voltar para o ninho) #mãespossíveis
























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