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mama

  • jumvasconcelos
  • 4 de ago. de 2015
  • 3 min de leitura

quando eu era criança, me lembro de ver cadelas vira-latas vagando pelas ruas de Belém ou da Ilha do Mosqueiro. secas, costelas aparentes e tetas dependuradas como estalactites moles que me faziam pensar na vida milenar que aquele animal poderia ter. me lembro de olhar pra ela com certa angústia e desprezo, por não serem limpas, ou graciosas, ou por não terem dono, ou boa raça, por estarem gastas, ou por me desprezarem também. enfim, coisas que uma criança brasileira de classe média aprende com a mídia e suas réplicas à sua volta, em uma cultura massificada e ainda colonial. hoje, volto de uma viagem ida para os arredores de Cametá e Bragança, no interior do Pará. para viajar, eu havia deixado na Ilha do Mosqueiro as minhas duas filhas. a mais nova, pela primeira vez na vida ficaria longe de mim. jamais passara uma só noite longe, em um ano e meio, para que ela não deixasse de mamar. antes de partir, a última mamada. a mama já vinha minguando aos poucos, descompassada do desejo ainda pulsante da pequena que ainda pedia um leite que não mais a saciava. ao final, parti. peito seco e coração vazando angústia. as primeiras distâncias no espaço, não foram sentidas pelo peito que prometia se tornar uma verdadeira ampulheta gotejando leite no tempo. no primeiro almoço na beira do Tocantins, reencontrei uma cadela vira-lata vagando com seu raquitismo, suas estalactites moles. e depois de toda a vida que me atravessou eu me encontrei nela como não me encontrava em nenhuma outra coisa. seca, tetas esvaziadas do leite e da juventude, com certo desprezo pela graciosidade, abominando a ideia de dono e mais ainda a ideia de boa raça, aprendendo a desprezar os que à minha volta são como eu era. quantas crias havia ela deixado pra trás? quantas crias havia ela espalhado pelo mundo? como conseguia agora vagar e cuidar só de si? aquelas tetas secas agora estavam no meu corpo. e sim, elas haviam vivido histórias de profundezas milenares entre mim e minhas duas crias. da nutrição, à imunização, passando pela tecitura dos nossos vínculos saudáveis ou imersos em tratamentos e cura de depressão pós-parto. olhos uns dentro dos outros; peles mesmas que com o tempo delas se esticam e com o meu tempo se encarquilham; trocas de ares respirados; e a elaboração de inconsciências que linguagem alguma jamais atingirá para traduzir. a cadela foi embora não sem me desprezar, como de costume. e eu fiquei ali, com as crias deixadas pra trás enquanto eu vagava cuidando só de mim depois de quatro anos e meio vivendo como um fractal desdobrado em ramos. o meu reencontro com a cadela da infância durou dez segundos. o tempo que ela precisou pra cheirar a comida podre da lixeira que estava ao meu lado. depois disso me vi em muitas outras coisas, como em uma porca que tentava caminhar, mas não conseguia porque o último filhote a desmamar ainda andava pendurado na teta. voltei com a teta cheia de tudo, até de leite. minhas filhas haviam passado bem os dias sem mim e a menor não mais insistia aos prantos para mamar. assim, uma semana antes desta, que é a semana mundial da amamentação, eu e ela deixamos juntas a amamentação. pedi à Walda Marques que fizesse um retrato da última mamada. no braço esquerdo Cecilia mama o vínculo, porque leite não mais há. no ombro direito, um xale cigano dado às que são dadas a viver e a vagar. (dedico este texto e este momento às minhas filhas; à minha mãe; à Vânia, que é tia e pediatra das minhas crias; ao meu marido Vinicius, que me apoiou e se entregou comigo a cada dia de amamentação delas; à minha amiga Caru, que compreendeu todas as nuances da minha jornada com a Cecilia e me permitiu a entrega total na construção árdua do nosso vínculo de mãe e filha; e à bebê que Caru carrega em seu ventre neste momento.)

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